Preparar o regresso a casa. O Papel do Cuidador Informal

Santa Casa da Misericórdia de Riba de Ave / 03 mar 2019

PREPARAR O REGRESSO A CASA: O PAPEL DO CUIDADOR INFORMAL

A evolução e as transformações sociais e políticas ocorridas nas últimas décadas introduziram mudanças significativas, tanto na vida privada como pública, das populações. Um conjunto diversificado de razões como o envelhecimento das populações, a maior actividade das mulheres fora de casa, o aumento das doenças crónicas, a maior resposta em menor tempo dos serviços de emergência e a reanimação nos locais de grandes acidentes, têm conduzido a uma maior procura de cuidados de saúde, o que implicou a reorganização dos serviços de saúde e a que não ficam indiferentes os diferentes atores do sistema.

A mudança é a palavra de ordem no tempo que atravessamos, sendo que ninguém ou nada se pode afirmar imune aos seus efeitos. A área da saúde em Portugal não é excepção e as mudanças no sistema e nos subsistemas, nos últimos anos, são bem o exemplo disso.

O país tende a reproduzir os problemas de saúde das sociedades industrializadas e aquilo a que hoje assistimos em Portugal foi o que já se verificou nos países mais desenvolvidos, nomeadamente a diminuição da mortalidade associada ao aumento da esperança de vida.

As consequências diretas em termos de saúde traduzem-se por um aumento considerável da procura de cuidados, sendo os idosos e os grandes incapacitados os maiores utilizadores dos serviços de saúde. Se o tempo de vida aumenta, significa que a população envelhece, modificando as características da procura de cuidados, pela presença de doenças múltiplas, sobretudo crónicas, conduzindo a internamentos prolongados em instituições para, quando regressam a casa, permanecerem por vezes sozinhos.

Apesar de ainda se dar pouca atenção às necessidades da família enquanto cuidadora, neste início de século vários têm sido os estudos efectuados acerca deste domínio, tentando-se encontrar respostas para dúvidas e incertezas que, em algum momento, recebem a notícia de que o seu familiar, até ali internado, vai regressar a casa. Estas situações acabam por ter repercussões no contexto familiar, sendo confrontados com novas exigências sem que para tal estejam preparados.

Todos sabemos que a maioria dos cuidados são prestados pela família e amigos, os quais desempenham um papel fundamental na continuidade dos cuidados, na medida em que contribuem em grande parte para fazer face à insuficiência dos sistemas de protecção social e de saúde. A verdadeira promoção da continuidade dos cuidados pode representar uma diminuição significativa de custos pessoais, sociais e económicos para o doente, para a família e para sociedade, na prevenção de complicações e de internamentos recorrentes.

Neste contexto, num modelo adequado de cuidados continuados, as intervenções de enfermagem centradas na família afiguram-se como nucleares. O envolvimento da família no projecto terapêutico da pessoa doente constitui uma ferramenta imprescindível para optimizar a capacidade para o cuidar e, simultaneamente, preservar o equilíbrio e cuidados mais personalizados às necessidades do doente.

Sendo a prestação de cuidados continuados um direito fundamental da pessoa em situação de doença e uma alternativa à hospitalização tradicional, como forma de elevar o nível de bem-estar da pessoa doente/família, rentabilizar as camas hospitalares de agudos e diminuir os custos com a saúde, devem ser tomadas medidas que permitam uma resposta coordenada, pronta e atempada dos diversos níveis de prestação de cuidados como garante da eficácia dos cuidados prestados.

O planeamento da alta e a consequente abertura à participação da família no processo de cuidados, apoiando-a e integrando-a na dinâmica do plano terapêutico de forma a reforçar as suas capacidades, conhecimentos e competências para cuidar dos seus familiares no domicílio, apresentam-se como uma estratégia a desenvolver no sentido de promover a continuidade e a dignidade da assistência do indivíduo doente até á sua máxima recuperação.

O Cuidar

O cuidar é inerente a todos os seres vivos desde o início da vida como forma de garantir a continuidade da espécie. É parte integrante, e de entre todos os animais o ser humano é aquele que menos capacidade detém para sobreviver com a ausência de cuidados. A sua fragilidade faz com que ao nascer seja de imediato colocado perante a possibilidade de morrer se não for cuidado. Marie-Françoise Colliére sublinha que “cuidar é, e será sempre, não apenas indispensável à vida dos indivíduos mas à perenidade de todo o grupo social”. Esta função, essencial e inerente à sobrevivência dos seres humanos, tem sofrido alterações ao longo dos tempos face ao sabor das mudanças sociais, económicas e tecnológicas. Em tempos distantes, garantir a sobrevivência era um facto quotidiano, representado também, tal como hoje, a expressão tomar conta e velar ou, simplesmente, cuidar, um conjunto de atos que têm como finalidade principal manter a vida dos seres vivos.

As práticas de cuidados, edificadas à volta de tudo o que é fértil, foram funções ao longo dos séculos atribuídas às mulheres. Tendo como alicerces a experiência vivida e interiorizada no próprio corpo, a prática dos cuidados tem sido tradicionalmente conotada com a feminilidade com base nos “atributos naturais” das mulheres, aparentemente facilitadores de um melhor desempenho nesta área, conferindo mesmo prestígio a quem os realizava. Cuidar, hoje em dia, é algo que diz respeito a todo o corpo social, em que cada cidadão, masculino ou feminino, deve assumir as suas funções familiares e cívicas, “Cuidar de tudo o que compõe o mundo e de tudo o que contribui para o tornar cada dia mais humano, eis o que poderemos designar por missão da comunidade dos humanos” porque a humanidade precisa de cuidado para existir no mundo e o perpetuar (Hesbeen).

Sublinhando ainda que a essência e o valor do cuidar podem ser fúteis se não contribuírem para uma filosofia de acção. Nesta filosofia de acção é necessário colocar algo de nosso, o que implica uma intenção, uma vontade e uma decisão antecipada que se cumpre pouco a pouco. E nesta forma de cuidar faseada não faz sentido cuidar dos doentes sem cuidar daqueles que deles cuidam. Os cuidadores, mais do que quaisquer outros, têm necessidade que se cuide deles, porque cuidar é uma arte difícil que tem a ver com a incerteza do ser, a sua fragilidade e a sua diversidade.

O Cuidador Informal

Nas últimas décadas a vida humana prolongou-se, não só em consequência dos progressos científicos e tecnológicos da medicina, mas também devido às transformações socio-económicas que proporcionaram uma melhoria geral da qualidade de vida e do bem-estar das pessoas. Este fenómeno, como já se viu, conjuntamente com a baixa taxa de natalidade, está na base do envelhecimento demográfico que se tem verificado. À maior longevidade nem sempre corresponde uma vida funcional, independente, autónoma e sem problemas de saúde. Pelo contrário, o número de indivíduos com perda de autonomia, de invalidez e de dependência aumentam devido à maior prevalência de doenças crónicas e incapacitantes. A maioria delas, bem como as suas sequelas, estão associadas à deterioração da capacidade física, emocional e social do indivíduo, colocando em risco a sua autonomia funcional para o desempenho das atividades da vida diária, necessitando, para isso, da ajuda de outrem.

O elevado número de doentes com elevado grau de dependência que hoje existem na sociedade faz com que, atendendo à previsível degradação do seu estado de saúde, a sua rotatividade pelas camas dos hospitais seja cada vez mais frequente. No entanto, após a fase aguda, procura-se que os tempos de internamento sejam cada vez mais curtos e que os doentes retornem ao seu contexto familiar. Assim, desde cedo, os familiares devem ser chamados e orientados a colaborar na continuidade da prestação dos cuidados, passando a realizar um conjunto de tarefas que até então tinham sido realizados pelos enfermeiros, tornando-os, assim, elementos importantes no processo de recuperação do utente.

O termo cuidador principal refere-se ao indivíduo, familiar ou amigo, que assegura a maior parte dos cuidados que o doente requer no domicílio. A designação cuidador informal surge por contraste aos profissionais de serviços de saúde que formalmente assumem o exercício de uma profissão, para a qual optaram de livre vontade e tiveram preparação académica e profissional (Martins). Ao cuidador de referência, seja familiar ou amigo, são incumbidas as principais tarefas relacionadas com a prestação de cuidados, assim como toda a responsabilidade a que isso acarreta. 

Dependendo da situação do doente, numa parte significativa dos casos o estado geral de saúde e a idade das pessoas a serem cuidadas colocam o cuidador perante situações de fraca expectativa de sobrevivência e de fim de vida. Esta situação, psicologicamente difícil para o cuidador, pode ser fonte de sofrimento, levando-o a refletir e a antever o seu próprio fim.

As solicitações da pessoa doente podem absorver de tal forma o cuidador que este deixa de ter tempo livre para descansar o suficiente, para desenvolver actividades de que gostava e lhe davam prazer. A par disto, muitas vezes o cuidador sente-se inseguro e sem capacidade para lidar com as situações de imprevisto que possam ocorrer, colocando, por vezes, em causa a utilidade da sua ação, no sentido de ajudar o doente a recuperar e a aumentar o seu potencial de saúde.

O cuidador ao assumir esse papel, e porque ele se relaciona com pessoas a quem o mesmo tem laços de afectividade importantes, confronta-se por vezes com uma situação sem alternativa de escolha, caracterizada por uma forte obrigação moral e social raramente é partilhada com outros elementos da família. O estado de saúde e as solicitações do doente podem absorver de tal forma o tempo do cuidador que este, por vezes, sente-se desgastado pela contínua sobrecarga física e emocional o que o conduz ao isolamento e à diminuição dos contactos sociais (Brito).

Os domínios em que a pessoa com perda de autonomia tem mais necessidade de apoio são:

• Suporte em atividades instrumentais da vida diária, nomeadamente arrumar e limpar a habitação, preparar as refeições, fazer compras, pagar contas;

• Assistência nas dificuldades funcionais de autocuidado, como o banho, higiene pessoal, vestir, alimentar-se ou deambular;

• Apoio emocional, companhia, conversar.

 


Bibliografia


Brito, L. (2001) - A saúde mental dos prestadores de cuidados a familiares idosos. Coimbra: Ed. Quarteto.
Collière, M.F. (1999) – Promover a vida. Lisboa: Editora SEP.

Martins, T. (2006) - Acidente Vascular Cerebral: qualidade de vida e bem-estar dos doentes e familiares cuidadores. Coimbra: Ed. Formasau.

Honoré, B. (2002) - A saúde em Projecto. Lisboa. Lusociência. Ed. Técnicas e Científicas Lda.

Hesbeen, W. (2000) - Cuidar no Hospital : Enquadrar os cuidados de enfermagem numa perspetiva de cuidar. Loures: Lusociência.

Luisa B.; L. Joyce- M.(2005) - Psicologia da doença para cuidados de saúde: Desenvolvimento e Intervenção. Porto: ASA Editores, S.A.

Lazure, H. (1994) - Viver a relação de ajuda: abordagem teórica e prática de um critério de competência da enfermeira. Lisboa: Lusodidacta.

 

Artigo de Raúl Marques, Enfermeiro